No Brasil, porém, o termo Àbíkú, dito "Abikum" tem significado totalmente diverso. A mãe que entra grávida para o processo de iniciação, dá a luz à uma criança que já nasce "feita pronta", sem necessidade da tonsura ritual. Quando esta criança completa sete anos, sacrifícios são feitos para seu Òrìsà, sua cabeça é recoberta por uma cabaça antes que o sangue seja derramado, pois sobre a cabeça de uma criança "Abikum" o sangue não deve correr.
Esta criança nunca estará sujeita a um transe de possessão por um Òrìsà, a ela estarão vetadas a maioria dos cargos dentro da hierarquia sacerdotal brasileira. Ao mesmo tempo, ela já nasce com um posto honorífico, o de "feita sem ter sido raspada", e é tido com certo que nenhum mal físico ou espiritual poderá atingi-la.
Dizem também alguns sacerdotes que as crianças que nascem em datas determinadas são "Abikum". E, sendo assim, pais e mães ambiciosos, programam seus filhos para que nasçam nestes dias, e até mesmo operações cesarianas são realizadas, para adequar a chegada ao mundo das crianças às datas de nascimento apropriadas para "Abikum".
O modo de encarar a pessoa "Abikum" muda de casa para casa, podendo ser acrescentados ou eliminados detalhes dessa explanação.
Os pais e mães de Òrìsà brasileiros deveriam reavaliar seu conceito sobre crianças Àbíkú, uma vez que estes nascimentos ocorrem não só na terra Yorùbá, elas nascem em todo o mundo e no Brasil também. É imperioso também que se instruam sobre todo o ritual sacro a ser realizado dentro da problemática Àbíkú.
Vários povos ao redor do Golfo de Guinéa tem a mesma crença nos Àbíkú, embora dêem à eles nomes diferentes. Os Nupe chamam-nos de Kuchi ou Gaya-Kpeama. Entre os Ibo, são chamados Ogbanje ou Eze-Nwanyi ou Agwu ou ainda Iyi-Uwa Ogbanje. Já os Haussa chamam-nos Danwabi ou kyauta. Os Akan denominam a mãe de um Àbíkú Awomawu e entre os Fanti são conhecidos por Kossamah.
Famílias que já perderam um ou mais filhos, tendem a buscar na religião um consolo e uma explicação para estas mortes, e é dever da Tradição de Òrìsà e do Candomblé Ketu, estar apta para oferecer, além de um amparo religioso que diminua o sofrimento dos pais, uma solução para que tal tragédia não mais ocorra.
Temos muita pouca literatura em português sobre o assunto, talvez apenas a tradução de um excelente artigo de Pierre Verger, publicado em 1983 na Revistas Afro-Asia no 14, com uma explanação ampla sobre Itan Ifá, Oruko Àbíkú, folhas e Ofo do qual farei citações literais mais adiante.
Outros autores africanos, franceses e ingleses falam sobre o assunto, em considerações superficiais ou profundas, mas suas publicações não estão disponíveis para a quase totalidade do sacerdócio brasileiro.
O fato de não possuirmos no Brasil local determinado, como a Floresta Àbíkú de Awaiye, não nos impede de sacralizar parte de um bosque para receber as oferendas das famílias das crianças Àbíkú.
Tomando por base as recomendações do Itan Ifá, um Ebó poderá ser montado com um pedaço de tronco de bananeira, roupas e gorros tingidos de òsun e bordados de guizos e búzios, pratos com comidas [Iyan; Akara; Ekuru; Eko; Doces; Canjica; Frutas; Mel; Guizos; Bebidas; Animais; Cabra; Pombo; Galo; Folhas].
As roupas serão colocadas nos galhos da árvores, as comidas e oferendas ao redor no chão, ou monta-se um carrego como para a morte, embrulhado em pano branco, que será enterrado ou solto nas águas de um rio.
Não é necessário o uso de palavras, pois só o fato dos pais saberem qual o significado da oferenda secreta é suficiente para dar força mágica ao Ebó.
Nada porém deve ser feito sem confirmação e autorização de Òrúnmìlà, pois só a ele cabe nos orientar em nossas dificuldades e dúvidas.
As folhas são colhidas como oferenda e utilizadas para fazer fricções no corpo, ou na feitura de pós mágicos que serão esfregados nas incisões no corpo e rosto dos Àbíkú, e na confecção de amuletos (Onde) ou para banhos rituais.
Cada folha tem sua frase mágica, chamada Ofo, que aumenta seu poder de atuação no Ebo.
Cito aqui textualmente os Ofo escritos por Pierre Verger:
Ewé Abirikolo, insinu Òrun e pehinda.
Folhas de Abirikolo, coveiro do Céu, voltai
Ewé Agidimagbayin, Olorum maa ti kun, a a ku mo
Folha de Agidimagbayin, Olorun fecha a porta do Céu para que não morramos mais
Ewé Idi l'ori ki ona Òrun temi odi
Folha de Idi, dizei que o caminho do Céu está fechado para mim
Ewé Ija Agbonrin
Não ande pelo longo caminho que conduz ao Céu
Ewé Lara Pupa ni osun a won Àbíkú
A Folha de Lara Vermelha é o cânhamo dos Àbíkú
Olubotuje ma je ki mi bi Àbíkú omo
Olubotuje não me deixe parir filhos Àbíkú
Opa Emere ki pe ti fi ku, yio maa eu ni, nwon ni, nwon ba ri Opa Emere
Vara de Emere não os deixe morrer, isto lhes agrada, ver a Vara de Emere.
As crianças Àbíkú devem, no sétimo dia a partir do nascimento, se forem meninas, ou no nono dia, se forem meninos (se for o caso de gêmeos, o dia certo é o oitavo) passar pelo ritual de Ikomojade , quando recebem um nome específico que desestimule sua volta ao Òrun. Nesta cerimônia são usados água, dendê, sal, mel, obì, peixe, gin, atare.
NOMES ÀBÍKÚ
Omolabake - Esta é uma criança que eu mimarei.
Kujore - Deus poupou este aqui.
Siwoku - Pare de morrer. Tire as mãos da morte.
Kalejaye - Sente-se e goze a vida.
Omotunde - A criança voltou.
Maku - Não morra.
Kikelomo - Crianças são feitas para serem mimadas.
Moloko - Não tem mais enxada para enterrar.
Ayedun - A vida é doce.
Os nomes Àbíkú negam a morte e contam a doçura e a alegria da vida. Contam também como a Terra é bela e boa para se viver. Deve-se sempre chamar a criança por este nome, que pode ser incorporado oficialmente ou não aos seus outros nomes e sobrenomes. Isto também ajuda no rompimento do vínculo com o Egbe Òrun Àbíkú.
Como a descoberta do pacto é algo difícil, sempre próximo ao dia do aniversário da criança, até que esta complete 19 anos ou pelo prazo que o Ifá determinar, devem ser feitas oferendas nos locais sacralizados, acompanhadas ou não de Ebo a Egbe Eleriko.
Para Òrìsà Egbe se colocam, em uma grande cabaça, os seguintes elementos: Ovos; Akasa; Iyan; Akara; Eba; cana-de-açúcar; Obi; Éerù, Ekodide; Bananas; Àádun; Doces - em um número de 1 ou 6. Esta cabaça é fechada, colocada em um saco e solta num rio, com acompanhamento de rezas e cantigas,
REZA (DE IBADAN)
Egbe. a afável mãe, aquela que é apoio suficiente para aqueles que a cultuam.
Aquela que veste veludo, a elegante que come Cana-de-Açúcar na estrada de Oyo.
Aquela que gasta muito dinheiro em óleo de palma.
Aquela que está sempre fresca e tem fartura de óleo com o qual ela realiza maravilhas.
Aquela que tem dinheiro para o luxo, a linda.
Aquela que sucumbe à seu marido como à uma pesada clave de ferro.
Aquela que tem dinheiro para comprar quando as coisas estão caras [3].
CANTIGA (DE LALUPON)
Por favor, use um Oja.
O Oja é usado para atar as crianças em nossas costas.
Eu posso cultuá-la todo o quinto dia.
A Mãe Egbe que mora entre as plantas.
Dê-me meus próprios filhos.
Eu posso cultuá-la a cada cinco dias [3]
Os Àbíkú não são, como querem certos autores ou sacerdotes, seres maléficos, que tem por "missão" causar sofrimento às suas mães.
Eles carregam consigo, por causa de seu constante morrer/renascer, o peso de Iku, a morte, e são seres divididos entre a vontade de ficar na Terra com suas famílias e o desejo e a obrigação de retornar ao Egbe Òrun.
O Bàbálòrìsà ou Ìyálòrìsà, tenho verificado que uma criança é Àbíkú, deve estar preparado para contornar a natural reação dos familiares, de medo, susto, repulsa e mesmo horror, porque a primeira impressão de pais não habituados ao assunto, é crer que o sacerdote coloca seu filho em uma classificação espiritual de maldade e perversão. Também o risco iminente de uma morte súbita apavora a família que tende a reagir com agressividade ou incredulidade, e quer garantias infalíveis e imediatas que isso não é verdade, por quaisquer meios.
Portanto, é necessário que se explique aos pais o problema, e que se dê ao mesmo tempo soluções adequadas, que se cite casos e exemplos, naturalmente sem falar em nomes ou detalhes desnecessários, a fim de que os familiares concordem em ser totalmente esclarecidos e orientados para uma solução definitiva. Explicar também que oferendas "podem" reter o Àbíkú na Terra, se feitas corretamente, mas antes que tenha sido o pacto identificado e rompido, a oração e a crença profunda nos Òrìsà é de grande valia.
Mães que já tenham perdido filhos Àbíkú devem ser avisadas da necessidade de oferendas para que o Àbíkú não volte a nascer de seus corpos e elas possam dar à luz crianças normais.
Por vezes o nascer e morrer inúmeras vezes de uma criança pode abalar física e psiquicamente a Mãe e recursos médicos e terapêuticos "nunca" devem ser abandonados. Pelo contrário, sua utilização deve ser incentivada, em combinação com o tratamento espiritual.
Os pais não devem considerar isso com "castigo", "karma", "feitiço" ou outras explicações engendradas pela falta de conhecimento. Para isso o sacerdote deverá esclarecê-los e pacificá-los com a solidez e peso de seus argumentos.
Assim, no Brasil, como nos países Yorùbá, a problemática Àbíkú será contornada e menos pais serão vítimas de sofrimento causado pela morte de seus filhos.
*Ìyá Sandra Medeiros Epega preside há 35 anos o Ilé euiwyato/Guararema/ SP
Este trabalho pode ser copiado, divulgado, reproduzido, desde que na íntegra, e que sejam mantidas suas características religiosas e divulgada a fonte.
BIBLIOGRAFIA
[1] - Yorùbá religion & medicine in Ibadan, 1980, George E. Simpson, Ibadan University Press.
[2] - Afro-Asia NO. 14, 1983, A Sociedade Egbé orun dos Àbíkú, as crianças nascem para morrer várias vezes, Pierre Verger, pg. 138 a 160.
[3] - Yorùbá religion & medicine in Ibadan, 1980, George E. Simpson, Ibadan University Press.
[4] - Yorùbá religion & medicine in Ibadan, 1980, George E. Simpson, Ibadan University Press.
As outras informações foram obtidas através da tradição oral, com os anciãos da família Epega, em Ode Remo e Lagos.